“As coisas não vão boas entre eles”, pensei durante uma viagem de ônibus. Dezenas de pessoas devem ter compartilhado meu pensamento. O que fazer? Todos ouviram. Todos notaram a frustração daquela menina. Espiei de canto, mas não consegui ver se chorava. Por que brigavam tanto?
Tudo começou quando o celular dela tocou nos cinco primeiros minutos de viagem.
- Oi, amor! - atendeu a menina.
Logo de início também iniciou sua defesa. Sua luta contra acusações, que não podiam ser ouvidas. Eram imaginadas por todos passageiros. Tentei desviar a atenção, olhando pela janela. De repente ela gritou:
- Quem te disse isso?
“Xiii! Deduraram a moça para o namorado”, pensei. “Onde tem fumaça tem fogo”. Era perceptível a perturbação das pessoas. Algumas senhoras ficaram constrangidas. Uma delas, sentada ao meu lado comentou:
- Essas moças de hoje em dia só fazem besteira - Assenti de leve com a cabeça e fiquei em silêncio. Afinal, em briga de marido e mulher... Desespero!
- Tu não pode fazer isso comigo! Não Pode! Isso é mentira – Agora o tom na voz era de choro.
Alguém do fundo pediu silêncio. O ônibus inteiro estava quieto. Todos atentos à conversa. Ninguém dormia, como é de costume ver. Uma menina, solidária ao sofrimento, ofereceu um gole de água. Ela não aceitou. A senhora ao meu lado comentou, de novo:
- Aposto que ela saiu com outros tantos e ele ficou sabendo pelas “amigas dela” – deu uma risadinha. “Será?”, me perguntei. “Pode ser”. A cobrança era insistente, o rapaz do outro lado da linha deveria ter bons argumentos. Um cara que estava sentado na poltrona à frente da minha se virou e sussurrou:
- Se fosse comigo, eu mandava ela se catar na hora! – uma outra moça que estava em pé no corredor disse:
- Coitada! Sofrendo tanto por causa de um traste. Aposto que ele não é um santo!
Talvez, não fosse mesmo. De repente:
- Amorzinho, a bateria do meu celular vai terminar. Eu chego em casa e te ligo. Ou melhor, eu vou até tua casa. Ai, não faz isso – um choro baixo se ouviu.
“Terminou a bateria”, concluí. O motorista deu uma olhada pelo retrovisor. Todos estavam quietos. Ninguém falou mais nada. Até o término da viagem, alguns conseguiram dormir.
Falar ao celular é tão comum que muitas pessoas nem se dão conta onde estão para tratar de assuntos sérios. Mais que isso, até que ponto é possível invadir o espaço de audição do próximo? Difícil saber. Contudo, ao quebrar essa privacidade abre-se um leque de interpretações e até de pré-julgamentos. É a consequência por falar ao celular desrespeitando as pessoas ao seu lado. Ainda mais em um ônibus, né?
Certa vez, eu estava experimentando uma roupa em uma loja e uma mocinha se interpôs entre mim e o espelho. Para ela eu, simplesmente, não existia. Revogou meu reflexo, sem pedir licença, muito menos desculpas. É a ficção do anonimato. De tanto tratarmos os outros como invisíveis, será que nos cremos igualmente invisíveis? E, pelo jeito, inaudíveis também. O outro é apenas a figuração na história moderna do ego.
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